No dia 20 de janeiro deste ano, o Ministério da Saúde decretou situação de emergência de saúde pública nas terras do povo Yanomami, em Roraima, diante do cenário de desassistência sanitária dos indígenas que vivem neste território. O diretor executivo da Associação PanAmazônia, Belisário Arce, escreveu um artigo onde compartilhar a sua opinião sobre o drama humanitário da população Yanomami; confira:
Em todo o mundo, há grupos humanos que, por múltiplas razões, permaneceram à parte do longo processo civilizatório global, iniciado, supõe-se, há nove mil anos, com a movimentação de populações asiáticas para outras partes do mundo antigo, os chamados povos indo-europeus.
Outras civilizações se desenvolveram autonomamente, como a chinesa e a egípcia, mas acabaram influenciando e contribuindo para a vertente central civilizatória que criou o mundo contemporâneo, o que inclui: o advento da agricultura, a ideia grega de democracia, o direito de base romana, a ética e os valores morais judeu-cristãos, o sentimento global de raízes epicuristas (vida de prazer com moderação), revisadas pelo mundo renascentista, a mentalidade "científica" do Iluminismo, a urbanização, o mercantilismo que uniu todos os pontos do planeta, a Revolução Industrial, o capitalismo, a globalização e o desenvolvimento tecnológico de ponta das últimas décadas.
Essas populações que ficaram à margem do processo civilizatório global pagaram um elevado preço. A maior parte foi dizimada ou extinta. As que ainda existem, padecem de muitos males, entre os mais comuns o alcoolismo, altos índices de suicídio, a profunda pobreza, enorme precariedade sanitária e alimentar.
Tive a experiência de conhecer populações indígenas no Canadá. Em variados graus, padecem dos mesmos problemas dos povos ameríndios.
Quanto às populações ancestrais da Amazônia, como sou de Manaus e, desde a infância, viajei muito pelo interior, conheço a realidade. É notório que o desenvolvimento histórico dos Estados Nacionais nas Américas foi uma catástrofe para os povos pré-colombianos. Na Amazônia, não foi diferente. Mas, houve, basicamente três movimentos de relação dessas populações ancestrais e os colonizadores: a assimilação, o conflito e o isolamento. No centro-sul do Brasil, houve basicamente o extermínio dos indígenas, mas, na Amazônia, a assimilação foi muito grande. Um percentual elevado dos habitantes da região descende de indígenas ou são índios aculturados. É preciso entender que muitas mortes que há nos conflitos na região são entre os próprios indígenas, uns já inseridos na sociedade geral e outros não. Não é um conflito entre "brancos e índios". Dizer isso seria mais do que uma simplificação, mas uma inverdade.
Posto isso, suponho que é válida e necessária uma reflexão verdadeira e desvencilhada de ideologias sobre o futuro e destino dos povos ancestrais que ainda vivem à margem da sociedade geral. O que se deve fazer com esses seres humanos? Nada, deixá-los "livres" à própria sorte?! Assisti-los, interminavelmente, mantendo por meios artificiais (leis e políticas públicas especiais) seu estilo de vida, cultura, espiritualidade, identidade, para que possam viver de modo pleno e feliz em sua sociedade originária?! Integrá-los, de modo digno, dando condições para serem homens e mulheres plenos na sociedade global?!
A resposta é difícil.
É preciso encarar a realidade. O modo como o Estado brasileiro tem tratado os povos indígenas não tem dado certo. Embora tenha havido um aumento populacional nas últimas décadas, os problemas potencializaram-se: suicídio, alcoolismo, doenças venéreas, exploração sexual, chacinas, fome.
Evidentemente, há algo errado na receita.
A propósito, não se pode deixar de mencionar a utilidade das reservas em terras indígenas. Muitos povos, embora tenham áreas gigantescas de floresta, não conseguem garantir a sobrevivência, passam fome e todos os tipos de privações.
No caso de Roraima, a Raposa Serra do Sol (embora não relacionada diretamente ao caso dos Yanomamis) destruiu a economia do estado, que, só recentemente, no governo do Antonio Denarium, começou a soerguer-se. Que bem a decisão do STF fez de fato aos povos indígenas de Roraima?
No caso do povo Yaonomami, 38 mil indivíduos que detêm a MAIOR terra indígena do Brasil e da Venezuela, juntas a maior do mundo (talvez, uma das mais baixas densidade populacional do Planeta), a situção é aterradora: fome, malária, tuberculose, assassínio, um pesadelo.
Há yanomamis em diversos níveis de contato com as sociedades nacionais do Brasil e da Venezuela, desde indivíduos e grupos integrados aos isolados. Com estes últimos, o risco de conflito violento é maior.
No momento, a solução, já em andamento (houve reunião, ontem, entre o governador Antonio Denarium e o ministro da Justiça, além de ações do exército, com lançamento aéreo de alimentos e remédios), é dar assistência humanitária e retirar os garimpeiros e outros invasores das terras dos yanomamis.
Mas, a médio e longo prazo, o que fazer? Não sei, mas suponho que o drama dos yanomami e demais povos ancestrais não cessará com a fórmula atual.
Não se pode deixar de ter em mente que os indígenas são seres humanos idênticos a todas as outras pessoas do planeta. Eles devem, de fato, permanecer vinculados a um estádio do desenvolvimento civilizatório de tipo neolítico? Isso garantirá seu bem-estar e felicidade?
Novamente, não sei a resposta.
Mas, relato que, certa vez, conversando com uma senhora da etnia Tucano, ela me disse que o melhor presente que ganhou na vida foi uma sandália de borracha quando ainda era adolescente. Disse-me que nunca sentiu tanto alívio na vida, pois sofria imensamente ao ter de andar descalça na floresta, que os espinhos doíam muito. Fiquei muito surpreso, pois nunca havia pensado sobre isso.
Em outra ocasião, conversava com um senhor da etnia baniwa (mestres dos venenos) e ele me dizia que os garimpeiros deixavam roupas espalhadas na floresta para que os índios as vestissem, contraíssem doenças e morressem. Perguntei: e por que os índios pegam as roupas? A resposta me surpreendeu: porque, à noite, faz frio na floresta.
Ou seja, os índios, como qualquer ser humano, querem um mínimo de conforto material.
Nos anos 80, trabalhei como assessor parlamentar na Câmara dos Deputados no gabinete do parlamentar Ézio Ferreira, um empresário de Manaus, homem muito elegante no vestir e nos modos, sempre muito perfumado e alinhado. Nessa época, a grande figura indígena no Parlamento era o Mário Juruna. Mas, não era a única. O Ézio Ferreira era ticuna, adotado aos 3-4 anos de idade pelo grande empresário manauara Waldomiro Lustoza, que lhe foi um pai amoroso, mimando o Ézio a extremos, que foi criado como um príncipe.
O Ézio gostava de dizer para todo mundo que era ticuna, embora nada tivesse de indígena no seu modo de ser. Isso leva a perguntar-me: o que é ser indígena?
É bom lembrar que a miséria em que vive a maioria dos indígenas na Amazônia é compartilhada por quase toda a população da região. Basta ir às periferias de Manaus para ver o mesmo drama. Já vi pessoas esquálidas como os yanomamis mostrados recentemente pela mídia nos municípios próximos a Manaus. A fome é uma constante na floresta Amazônica.
De 2004 a 2008, fui chefe de gabinete da OTCA e, de 2009 a 2010, coordenador internacional da Fundação Amazônia Sustentável (ONG criada pelo governador Eduardo Braga). Nesse período, que coincidiu com os dois mandatos do presidente Lula, viajei muito pelos rincões da Amazônia continental. Em todos os lugares, uma constante: a miséria e a fome. Naquela época, o governo federal dizia que havia eliminado a fome no Brasil. Bem, só se considerar que a Amazônia não é Brasil, pois aqui, nunca, as populações deixaram de sofrer com a fome.
Por tudo isso, defendo, insisto e persisto que não há solução para a Amazônia, inclusive para os povos originários, sem desenvolvimento econômico, o qual só pode ser alcançado com a implantação de uma agenda liberal econômica e com a primazia da ação da iniciativa privada.
Só a prosperidade pode salvar a Amazônia.
Sem prosperidade, os dramas sociais e ambientais continuarão indefinidamente.
Quanto ao garimpo, a solução é legalizar a atividade, permitindo que as populações da região tenham fonte de renda, e que o poder público possa controlar a exploração, recolhendo impostos e evitando danos ambientais e sociais.
Do que a Amazônia mais precisa é liberdade para prosperar.
Com mais absoluto respeito às vítimas do holocausto e seus descendentes, não consigo evitar de pensar nos campos de concentração nazistas quando vejo imagens de gente amazônica esquelética. Tampouco consigo deixar de refletir sobre a hipocrisia dos europeus, inclusive dos alemães. Vem à mente a sombria frase que encimava os portões dos campos de concentração "arbeit macht frei", o trabalho liberta... E, então, penso: será que essa gente quer que acreditemos na cruel ilusão de que "grün marct frei", o verde liberta... Até agora, a ideologia "verde" só tem servido para aprisionar as populações amazônicas, inclusive as ancestrais, à pobreza e à total falta de perspectivas. Gerações após gerações condenadas ao desespero na luxuriante e bela floresta amazônica.
Belisário Arce
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